Nena

                                                                                                                                                 Décio Schons

 Não ligues se me estendo. Esta história é meio triste, mas tem também um quê de engraçada.

Todos nos lembramos da Tia Mariquinha, aquela irmã da nossa mãe que nos mandava limpar bem os pés antes de entrar, toda vez que chegávamos à casa dela. Sim, aquela que nos olhava com olhar de jaguatirica. Pois a Tia Mariquinha, casada com o Tio Quincas, teve quatro filhos, três meninos e uma menina, a Nena. Os nomes dos meninos não vou aqui dizer, pois não são importantes para este causo.

Essa nossa tia era meio esquisita, desde que me lembro por gente. Paparicava os meninos, fazia-lhes todas as vontades, não deixava que faltasse nada a nenhum deles – eram pessoas de alguns recursos, esses Fragosos da costa do Brejo Grande (pena que para nós não deixaram herança alguma). Mas a Nena, coitada, só levava bordoada. Desde pequena, era o Judas da casa. Algum menino fazia arte? A Nena era quem apanhava. Alguém precisava sair lá fora na geada para apanhar lenha? Vai a Nena, porque os meninos podem se resfriar. Sempre tratada com o desprezo que madrastas do tempo antigo costumavam ter pelas enteadas – sem um carinho, um afago, uma palavra que não fosse um ralho ou uma carraspana.

Os anos se passaram, os meninos todos se casaram e foram morar longe. E a Nena quase ia ficando pra titia.

Aí apareceu um moço de pernas cambotas e olhos estalados que se encantou pela moça sem graça. Fez-lhe a corte a contragosto da mãe, mas o pai não tomava conhecimento, sempre preocupado com o gado, as tropas, os remates, os rodeios.

Casaram-se em seis meses e foram morar não muito longe da sede da estância, numa casinha de madeira muito simples, mas bem confortável. Ali viveram por uns três anos, sem novidades nem filhos, até que a Tia Mariquinha começou a ficar entrevada.

Começou com uma dor forte nas cadeiras, aí foi piorando, piorando, até que não conseguiu mais sair da cama. Veio médico da cidade – Tio Quincas foi buscar a cavalo. Quiseram levá-la para o hospital, mas ela parou patrulha, não iria sair de casa, aquele era o lugar dela, dali não arredava pé.

Adivinhas quem assumiu a tarefa de cuidar da Tia Mariquinha logo que a coisa começou a ficar feia e ela já não conseguia arcar com as tarefas da casa? Claro que foi a Nena. Mudou-se de volta para a casa da mãe e assumiu os cuidados da doente e todo o serviço doméstico. O marido não gostou, mas não adiantava reclamar, pois aquele era um ponto de honra que a Nena não admitia discutir. No mais, era tranquila, cordata, de boa paz, obediente até. Mas com relação à mãe, não. Não iria deixar de cuidar dela enquanto estivesse doente e ponto final.

O tempo passou, a Tia não melhorou. Ao contrário, foi piorando dia após dia. Cada vez menos os membros obedeciam aos comandos da mente, até que por fim passou a ter uma vida vegetativa, pois nem falar falava. Apenas ouvia.

Quando a situação ficou estabilizada desse jeito, com a clara sinalização de que iria permanecer assim por muitos meses e talvez anos, o marido da Nena deu às de vila-diogo. Afinal, casara-se para ter mulher em casa, alguém que cozinhasse, cuidasse das coisas dele – quem casa quer casa e quer alguém nessa casa. Nunca mais voltou.

Nena cuidou da Tia Mariquinha por quase trinta anos, até que a pobre senhora faleceu, já em idade bem avançada. Era dedicação total à mãe, todas as horas de todos os dias. Virava a mãe no leito de hora em hora, para que não se formassem escaras. Dava-lhe de comer na boca, pois a doente não tinha nenhum comando sobre os movimentos do corpo.

Quando chegava a hora do banho diário, segurava a mãe no colo, enchia-a de afagos e, com um carinho infinito, beijava-a e lhe dizia:

– Viu, mãezinha, agora a senhora não pode impedir que eu a abrace e a beije. Agora a senhora é só minha – minha e de mais ninguém.

Nota sobre uma Razão para Escrever

Os personagens vivem na minha memória, é impossível sufocá-los, impedir que se manifestem. Às vezes, quando penso já havê-los de todo esquecido, as imagens aparecem de repente, nítidas, as cenas a sucederem-se, como se o tempo não houvesse passado, como se elas ainda estivessem ali, congeladas, esperando uma providência, uma tomada de posição – algo que nunca soube identificar, algo que se queria de mim, mas que não conseguia perceber, por mais que me esforçasse.

Hoje cheguei a uma conclusão. O que se quer de mim é que esses personagens e essas cenas sejam descritas, para que não se percam, e, perdendo-se, perca-se parte da história. Essas histórias e essas cenas, muito locais e muito limitadas em sua expressão, podem, à primeira vista, parecer coisas de pouco ou nenhum valor. Não há, porém, coisas desimportantes quando se trata da vida de seres humanos. Alguém disse que nada há de mais universal do que aquilo que transcorre em minha aldeia.

Por isso, hoje cheguei à conclusão de que é preciso escrever, grudar no papel essas vidas, muitas já encerradas, esses acontecimentos pequenos, de pessoas pequenas em seus problemas, em suas visões e em seus sonhos. Pessoas como outras tantas, que não tiveram a oportunidade de gritar, de ter suas vozes ouvidas, seus clamores e seus reclamos, quando não atendidos, pelo menos percebidos.

De todos os quadros que me acorrem à mente, os mais marcantes envolvem crianças, principalmente aquelas que morreram cedo. É compreensível que assim seja, pois a morte marca profundamente a mente dos jovens e a morte de crianças, certamente, aumenta muito a intensidade com que isso acontece.

Hoje começo essa jornada. Uma pequena história, um perfil, pelo menos uma ideia por dia. Para que, nos dias que me restam, possa construir uma pequena galeria de retratos de uma era que se foi, de um modo de vida que se extinguiu, de sonhos que foram sepultados muito antes de sequer ameaçarem se tornar realidade.


Comentários

  1. Maravilhosa narrativa e muito verdadeira. Tive conhecimento em alguns momentos de minha vida, de casos muito semelhantes em que pessoas sempre desprezadas por alguém, se tornam imprescindíveis no futuro, para servir-lhes de apoio e ajuda. Parabéns.

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  2. Seguidamente penso que se meus pais e avós fossem vivos hoje eu ouviria com muito mais interesse as estórias contadas por eles, que na juventude não prendiam minha atenção.

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  3. Meu caro Amigo Gen. Schons - Importante decisão. Registrar sua história e de sua família é algo que todos deveríamos fazer. Acredito tanto que o tempo é curto e nenhum dia deixemos de escrever, que sob minha assinatura no e-mail cito um poeta romano e uma pintor grego da antiguidade - "Tempus fugit - Nulla dies sine linea".
    Sua postagem no blog me remete a uma reflexão que tem ocorrido ultimamente: Há anos, escrevo sobre fatos, feitos e personagens da história de S. Maria, da imigração alemã e de minha família. Mas a minha história e a dos que me são próximos tem ficado de lado. Eis o link do meu blog http://brennerdesantamaria.blogspot.com/ Grande abraço.

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