O Improvável Comensal
Décio Luís Schons
Casamento da irmã mais velha. Sensação
de perda, dolorosa e inevitável. Que seria de nós agora, sem aquela voz
tranquila e aconselhadora, mesmo nos momentos em que nós, a piazada arteira,
aprontávamos as nossas diabruras? Como viver sem nossa irmã para cuidar das
nossas gripes, para nos mandar assoar o nariz sem limpar na manga da camisa,
para nos mandar lavar muito bem os pés antes de ir dormir?
De minha parte, não entendia por que
minha irmã, na verdade uma segunda mãe, tinha que se casar com aquele moço que
morava tão longe de nosso povoado – casar e ir embora. Não conseguia ver lógica
naquilo, mas as coisas acontecem mesmo sem uma lógica aparente.
O dia do casamento, não preciso dizer,
foi para mim um dia sem o qual eu teria passado muito bem. Sei que estão
curiosos com o fato em si que me motivou a escrever esta historieta, mas não
posso ir direto aos finalmentes sem antes situá-los no tempo e no espaço – o
palco em que os acontecimentos tiveram lugar.
Nossa casa ficava num lugar ermo, no
interior do município de Tupanciretã. Os meios de transporte disponíveis eram o
cavalo, a carreta, a carroça, o carro de bois, a aranha. Automóvel, só em tempo
seco. Em tempos de chuvarada como aqueles dias que antecederam o casamento, o
aventureiro poderia até chegar a nossa casa, mas depois não sairia, ficaria
atolado nas encostas cheias de lama no caminho de volta.
Acontece que era dia de casamento, a
noiva precisava deslocar-se desde nosso povoado até a Vila do Toropi para o
casamento civil e religioso. Assim, depois de muito custo, um amigo do noivo
concordou em aventurar-se pelas ladeiras abaixo, desde a Boca da Picada até a
nossa casa, que ficava na várzea do rio Toropi Mirim.
Embarcaram então a noiva, nossa mãe e a
segunda irmã. Nós, moleques, já estávamos a caminho havia um bom
tempo, a pé por uma trilha estreita, atravessando sangas e banhados, pelo
atalho que conduzia à vila.
A bordo da Vemaguet, a noiva conduzia,
com todo cuidado, o bolo que havia sido preparado pela nossa mãe e pelas irmãs no dia anterior e do qual havíamos surrupiado bons pedaços durante o processo
de confecção.
Como era previsível, o automóvel ficou
atolado numa subida. Desembarcou todo mundo, inclusive a noiva, para empurrar a
pequena camioneta ladeira acima. O bolo foi cuidadosamente colocado sobre o
barranco à beira da estrada, para ficar a salvo de eventuais solavancos.
A tentativa de desatolamento foi
infrutífera, já que as três passageiras não tinham muque suficiente para aquela
empreitada. O passo seguinte foi chamar o morador mais próximo para que, com
uma junta de bois, rebocasse o carro até sair do atoleiro. Assim foi feito.
Lentamente, o automóvel foi sendo conduzido morro acima pelos fortes bois de
canga, estimulados pelos gritos e pelo chicote do vizinho que se dispusera a salvar
o dia.
A noiva já ia embarcar para prosseguir
na jornada, quando se lembrou do bolo de casamento que ficara descansando no
barranco, lá embaixo, depois da curva. Desceu apressada a ladeira, já
preocupada com a hora, pois o padre que oficiaria o casório não admitia
atrasos.
A cena que ela presenciou deve ter-se
repetido uma ou duas vezes, se muito, na história da humanidade: um cavalo
comendo o bolo de casamento.
Quando a noiva chegou junto ao carro,
chorosa, com o que havia restado do bolo, nossa mãe, como de costume,
apresentou logo uma solução: vamos fazer uma parada na casa da Comadre Antônia;
vocês duas batem umas claras de ovo e resolvemos logo esse problema: ninguém
vai perceber.
E assim foi feito. Comadre Antônia era
uma velha amiga de nossa mãe e as duas se entendiam pelo olhar. O bolo de
casamento foi restaurado em poucos minutos a uma aparência semelhante à
original.
O casamento aconteceu conforme
planejado. Tudo perfeito, não fosse por uma faixa de lama marrom na barra do
vestido da noiva, o que certamente não empanou o brilho da festa.
Sobre o bolo, correu à época o boato de
que a irmã do noivo teria encontrado uma folha de capim na fatia que lhe coube.
De minha parte, nada percebi. Hoje,
olhando para trás, percebo como sou privilegiado na qualidade de um dos poucos
seres humanos a terem tido a oportunidade de compartilhar o bolo de casamento
da irmã com um cavalo.
Obrigada por compartilhar momento tão único. Fico imaginando a cena rs ah, mas nada apagou o brilho da cerimônia, isso que importa
ResponderExcluirObrigado, Ana, pelo comentário.
ExcluirBela recordação e hilária,me fez ri bastante. como é bom ter uma infância pura e dividir com as pessoas caras, estamos precisando de ouvir mas histórias que nos deixe leves.
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário.
ExcluirUMA VIAGEM AO PASSADO, COM ALTOS E BAIXOS, MAS MUITO LINDA
ExcluirQue história curiosa e inédita.
ResponderExcluirLembrou um pouco a da "serra do rola moça".
Obrigada por este brinde ao narrar esse acontecimento, meu amigo.
Obrigado por comentar. Conheço só de nome esse parque nas proximidades de Belo Horizonte. Deve ser muito bonito.
ExcluirCaro amigo Schons! Ontem tinha acabado de ler mais uma vez alguns lances pitorescos do livro do nosso amigo Cel Villaça. Agora você aparece com essa história !!!!!!! Meu fígado ficou zerado!
ResponderExcluirDesculpe, a ideia não era intoxicá-lo com histórias do tempo do Epa. Obrigado, caro Amigo, pelo comentário.
ExcluirSensacional a lembrança de cena tão pitoresca e merecedora de relato.
ResponderExcluirObrigado, Jaétis. Um abraço.
ExcluirExcelente relato! Qualquer dia vou me aventurar a contar alguns.
ResponderExcluirObrigado. É preciso dar o pontapé inicial. Dizem que escrever e coçar é só começar...
ExcluirQuando leio seus causos me transporto para minha adolescência em Aquidauana-MS e me recordo dessas coisas incríveis pelas quais passamos e esquecemos. Muito bom!
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário.
ExcluirVizualizei as cenas, ri muito.
ResponderExcluirMesmo porque você conhece os personagens todos, não é, Marilei? Nessa época você ainda não tinha tido a péssima ideia de entrar para a Família Schons...
ExcluirA descrição da irmã mais velha é perfeita.
ExcluirQuanta riqueza literária neste delicioso conto familiar. Um “causo” para nunca se esquecer. E rir, com as lembranças plenas de carinho descritas. Muito obrigado pelo “lindo presente”.
ResponderExcluirVamos aguardar muitas outras de suas experiências vividas na sua/nossa, amada Cavalaria, e que você, certamente, enviará para a Confraria.
Vou contatar nosso querido Confrade, Cel Walter Paniz, para avisa-li desta nossa alegria em recebê-lo!
SAUDAÇÕES CAVALARIANAS!
Luiz Carlos MIGLORANCIA
Estamos juntos, caro Amigo Migliorancia. Obrigado pela gentileza do comentário.
ExcluirKkkkkkkkkkkkkk
ResponderExcluirDesculpe-nos pela risada, mas como também sou oriundo da "campina", não resisti.
Mergulhei na leitura e consegui visualizar a cena da Vemaguet no atoleiro e o cavalo saboreando o bolo.
Espetacular!
Sim, a Vemaguet patinava bem, ainda mais que estava com os pneus lisos...
ExcluirQue história pitoresca! Fico imaginando a expressão da "mana". Belo texto para ler no dia da nossa Cavalaria. Fraterno abraço, General!
ResponderExcluirObrigado, Prado. Parabéns pelo dia do Aniversário do nosso Patrono, o General Osório, um verdadeiro exemplo de Chefe e Líder.
Excluirque emocionante primo querido, imagino a Tia Clara com a sua calma e meiguice dando um jeito no bolo...e a noiva então? baci
ResponderExcluirObrigado, querida Prima, pela gentileza de seu comentário. Um abraço a todos.
ExcluirAhh! Meu irmão querido,meu escritor preferido. Essa história muito engraçada também encerra sofrimento, mas levávamos na brincadeira e aceitávamos como normal, como nuances da vida. As lembranças me levaram há 55 anos atrás e parece que foi há pouco tempo.
ResponderExcluirEnquanto lia, ria e chorava. As lembranças e cenas eram reais, mas tudo passou como um sonho ou um pesadelo, não sei bem.
O casamento saiu, criou raízes profundas e deu bons frutos.
O importante que nossa família, já com falta de alguns amados, continua firme e unida.
É isso mesmo, minha querida Irmã. Sobrevivemos a muitas coisas - você muito mais que nós, que chegamos depois, quando tudo já era mais atenuado. Algumas pessoas têm uma incrível capacidade para superar a dor e o sofrimento e continuar a viver e a lutar pelo melhor, não tanto para si próprias quanto para aqueles a quem amam. Você, minha Mana, construiu o seu lugar e escreveu seu nome em letras de ouro nas mentes e nos corações de seus irmãos, de seus alunos e de todos com quem conviveu ao longo de todos esses anos. Que Deus continue a abençoá-la e à querida Família.
Excluir