Os Irmãozinhos Afuzilados de São Gabriel
Décio Luís Schons (*)
Tio Aprígio
era um gaúcho andejo que gostava muito das viajadas longas no lombo de um rosilho
malacara sestroso e passarinheiro. O cavaleiro gostava dessas esquisitices do
cavalo porque o obrigavam a estar sempre atento, de modo a antecipar as reações
do animal, pois caso não estivesse atento o tombo era certo.
De vez em
quando, meu tio encilhava o rosilho, ajeitava uns poucos trastes na mala de
garupa, conferia se as cédulas amarelinhas estavam mesmo na guaiaca e saía a
trote, sem dizer a ninguém para onde ia nem quando pretendia voltar.
Tia
Florência, que conhecia muito bem o marido, dava de ombros e prosseguia no
serviço de sempre, sabendo que de pouco adiantava ficar preocupada ou chateada:
não iria resolver o problema mesmo. Além do que, para ela a ausência do tio
Aprígio não chegava a ser assim tão custosa. Bem ou mal, era menos roupa para
lavar e passar, era menos gente parando em frente da casa para ouvir os causos
do marido e, de quebra, ficava livre de preparar as travessas de mandioca frita
para alimentar os compadres nas longas tardes de prosa à beira do fogão a
lenha, enquanto o porongo passava de mão em mão.
Numa dessas
conversas que presenciei, meu tio contava histórias de quando foi recruta do
Exército, no 9º Regimento de Cavalaria, em São Gabriel. Foram vários causos
engraçados, mas o que mais me chamou a atenção foi o dos Irmãozinhos Afuzilados.
Não sei se
sabem, mas São Gabriel é uma terra rica de História e de muitas estórias
envolvendo os quartéis das diversas unidades do Exército que por lá fizeram
parada desde a formação e consolidação da nossa fronteira sul. Isso se deve à
localização estratégica da cidade, situada a uma distância conveniente da
fronteira, o que dificultava as sortidas vindas do outro lado e que ao mesmo
tempo facilitava o deslocamento de reforços, com presteza, para qualquer ponto
da linha divisória.
Em meados do
século XIX, em diferentes ocasiões, dois soldados do 1º Regimento de Artilharia
a Cavalo, à época sediado na cidade, foram fuzilados por problemas
disciplinares, à luz do Código de Lippe, então em vigor no Exército. O fato
causou comoção na cidade e, com o passar do tempo, esses soldados passaram a
ser venerados como santos milagreiros pelos integrantes do quartel, crença essa
que mais tarde se espalhou pela cidade e por toda a região. Embora não fossem
irmãos, passaram a ser conhecidos como Os Irmãozinhos Afuzilados de São
Gabriel. Contam-se causos impressionantes sobre a atuação dos Irmãozinhos milagreiros
no auxílio aos soldados de serviço e em socorro dos praças injustiçados por
algum superior hierárquico – inclusive infligindo castigos aos chefes que se
mostrassem injustos ou excessivamente exigentes no trato com seus subordinados.
Tio Aprígio
contava que, na época em que servia como recruta no 9º de Cavalaria, o
comandante de seu pelotão era um tenente recém-egresso da Academia Militar,
muito rigoroso no trato com os subordinados, começando pelos sargentos e
descendo sem piedade até a soldadesca. Nos finais de semana, o normal era que
os soldados ficassem detidos no quartel. Isso não era tão importante nos finais
de semana comuns, em que os soldados, a maioria deles vindos de longe, ficavam
mesmo no quartel. O problema era nos finais de semana prolongados, em que os
punidos ficavam restritos ao alojamento enquanto os demais colegas viajavam
para ver os pais e as namoradas. Nessas horas, a revolta era muito grande e o
nome do malquisto Tenente Notti era ouvido com certa frequência, acompanhado de
palavras impublicáveis.
Foi então
que a história dos Irmãozinhos Afuzilados começou a circular entre a
soldadesca, contada que fora por um sargento que também tinha suas diferenças
com o Tenente Notti. Quem conta um conto aumenta um ponto, já diz o velho
ditado. Só que o Sargento Rivério aumentava muitos pontos e suas histórias
sobre injustiças e punições imerecidas tinham epílogos os mais horríveis: desde
o tenente que morreu esmagado pelas lagartas do seu próprio carro de combate Sherman
até o capitão que teve o rosto destruído por misteriosa explosão quando acendia
o fogo na churrasqueira do clube (ele omitia o fato de que o capitão estava
derramando um litro de álcool sobre as brasas para atiçar as chamas).
Essas e
muitas outras histórias se espalharam rapidamente pela unidade e logo passou a
ser comum aparecerem velas acesas nos lugares mais improváveis do regimento:
nas antigas baias, agora convertidas em garagens; em torno do alojamento dos
oficiais e, com muita frequência, ao redor dos antigos cinamomos que
emolduravam o pátio central da unidade. Claro que a operação era conduzida
durante a noite e de maneira tão dissimulada que mesmo o pessoal de serviço
jurava de pés juntos jamais ter presenciado o momento em que as velas eram
acesas.
Logo após o
período básico, em que todos os soldados ralam da mesma forma para adquirir os
rudimentos da profissão, alguns recrutas são chamados para missões
particulares. Tio Aprígio, talvez favorecido pela sua inteligência e natural
capacidade de comunicação, havia caído no lado direito do Tenente Notti, seu
comandante de pelotão. Em razão disso, foi guindado à posição de auxiliar do Sargenteante
do esquadrão, com a missão de manter em ordem a sala dos tenentes. Entre as
tarefas subentendidas, estava a de preparar o chimarrão para o capitão comandante
do esquadrão e os tenentes gaúchos, que eram a maioria no regimento.
Uma manhã,
já nos rigores do mês de agosto, o Tenente Notti encontrava-se sozinho,
embrulhado em sua capa Ideal, na sala dos tenentes. Quando meu tio lhe trouxe o
mate recém-preparado, o Tenente o recebeu com um semblante preocupado, pediu
que fechasse a porta e determinou que sentasse à sua frente, o que era
totalmente incomum.
– Tchê
Aprígio, tenho uma missão pra ti.
– Sim
senhor, Tenente.
– Ouvi por
aí umas conversas idiotas sobre uns irmãozinhos fuzilados. Alguém me disse que
essas velas acesas espalhadas pelo regimento têm a ver com eles.
– Sim
senhor, Tenente.
– Bueno,
Tchê, a missão é a seguinte: descubra o que anda acontecendo e quem é que
acende essas malditas velas em torno do nosso esquadrão, que eu quero dar logo
um fim nessa besteira.
– Sim
senhor, Tenente.
– Não
preciso te dizer, Aprígio, que essa missão é secreta. Ninguém pode saber que eu
te mandei fazer isso. Entendido, Tchê?
– Sim
senhor, Tenente.
– Agora
podes ir...
Não foi
difícil para meu Tio descobrir do que se tratava – ele, aliás, já sabia. Naquele
mesmo dia, conversou com alguns colegas do seu pelotão, apenas para confirmar a
história e organizar as ideias a serem levadas ao tenente.
Na manhã
seguinte, uma sexta-feira, véspera de licença de uma semana para os
recrutas, a fila de soldados para serem ouvidos (e, no caso, punidos) pelo
Tenente Notti estava enorme. Meu Tio parou à porta, com a chaleira de água
quente e a cuia do mate nas mãos:
– Licença,
Tenente.
– Entra,
Tchê. Fecha a porta.
Meu Tio
fechou a porta e, antes mesmo de colocar os avios de chimarrão sobre a mesa, o
tenente rugiu:
–
Desembucha, Tchê.
Duas ou três
tossidinhas depois, meu Tio desembuchou a longa história dos Irmãozinhos Afuzilados,
de seus incontáveis milagres e de tudo que se dizia sobre as maldades e
injustiças cometidas pelo Tenente Notti no âmbito do seu pelotão de fuzileiros
– maldades e injustiças de que meu Tio, naturalmente, não tinha conhecimento.
– Bah, Tchê,
mas que coisa! Mas que barbaridade! Tu sabes muito bem que eu sou apenas justo com meus soldados.
Quem transgride tem que ser punido – isso é o que está escrito no regulamento.
– Para mim,
isso é claro, Tenente. Mas acontece que os soldados e também alguns sargentos não
pensam assim e estão combinando o seguinte: neste fim de semana, os que ficarem
punidos vão entregar o Sr. para os Irmãozinhos Afuzilados. E aí só Deus sabe o
que pode lhe acontecer...
Meu Tio não
chegou a descrever a fisionomia do Tenente ao receber essas informações, mas é
possível dela fazer uma ideia.
Depois de uma
boa pausa, um pigarro e uma alisada nos fios do bigode, o Tenente sentenciou:
– Tchê, está
entendido. Estás dispensado. Passa na Sargenteação e avisa que vou ter que me
ausentar do quartel para resolver um assunto urgente. Esses transgressores que
estão à minha porta serão ouvidos na semana que vem. Ah, avisa também que da
parte do nosso pelotão não haverá aditamento disciplinar neste final de semana.
Meu Tio
relatou que jamais havia testemunhado – nem voltou a testemunhar – tamanha
transformação na personalidade de alguém... e tudo numa velocidade espantosa. A
partir da semana seguinte, o Tenente Notti passou a ter o comportamento de um
verdadeiro irmão mais velho dos recrutas, não só do seu pelotão, como também do
regimento. Meu Tio, que era bom de lábia e de memória, relatou várias passagens
que comprovavam o que dizia, incluindo verdadeiros atos de desvelo do Tenente Notti
em prol de seus subordinados.
Julgo
desnecessário dizer que essa mudança no comportamento do tenente foi
interpretada como mais um feito sobrenatural dos Irmãozinhos Afuzilados. Na
capela a eles dedicada no aquartelamento hoje ocupado pelo 6º Batalhão de
Engenharia de Combate, existem inúmeras placas de agradecimento por graças
recebidas. Não constituirá surpresa se
algumas delas fizerem menção ao episódio aqui relatado.
(*) O autor é General de Exército na Reserva
Para quem quiser aprofundar: https://www.acadhistoria.com.br/outextos/Cabeda%20-%20A%20Sombra%20do%20Conde%20de%20Lippe.pdf
Amigo, é conhecimento popular que quando um comando é ruim para seus subordinados , é só entregar para os Irmãos Fuzilados que eles resolvem. Muita gente , sem ser do meio militar faz promessas e são atendidos. Meu irmão Arataú fez uma promessa e foi agraciado e colocou uma placa de agradecimento! Nosso povo tem muita fé neles.
ResponderExcluirObrigado, Maria Inês. Você, como gabrielense que é, sabe bem do que estamos falando.
ResponderExcluirEstimado amigo na primeira linha já recorri ao livro " Dicionário do Cavalo " do gaúcho Batista Bossle que comprei numa das minhas andanças pelo Rio Grande do Sul. Simplesmente adorei o texto.
ResponderExcluirMuito obrigado por suas considerações. Desculpe, mas às vezes esqueço que nem todos os brasileiros são gaúchos...
ExcluirExcelente texto. Grande abraço General Shons
ResponderExcluirObrigado, caro Amigo.
ExcluirGostei desse texto, rico em detalhes, me transportou,,
ResponderExcluirObrigado por ter lido e pela observação.
ExcluirBelíssimo registro. Parabéns.
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirTexto delicioso, Gen Schons! Viajei pelos pampas, visitei o quartel e ouvi a história pela boca do Tio Aprígio. Lembrei-me também dos meus tempos de tenente durante a leitura. Ainda bem que o alcance da mística não chegava a Natal!
ResponderExcluirObrigado, Coronel, pela paciência da leitura e pelo comentário.
ExcluirExcelente texto. Mesmo já conhecendo um pouco dos Fuzilados, fiquei um pouco arrepiado, lembrando nosso tempo de Tenente no 9ºRCB. Um abraço Gen Schons. Cada vez que vou a Tupanciretâ fazer audiências, lembro de Vossa Excelência. Um abraço!
ResponderExcluirBons tempos, Sergio. Temos uma história entre nós, numa instrução de tiro de morteiros na invernada do 9º RCB, em que sua equipe bateu o recorde mundial de velocidade de embarque em viatura M113 em movimento. Se me autorizar, eu conto.
ExcluirEstimado Gen Schons. Esses fuzilamentos dos soldados teriam ocorrido entre 1851 a 1855. Tentaram recorrer até o Imperador. Mas não obtiveram êxito. O ORegulamento do Conde de Lippe era muito rígido. Na sala do comandante do 6 Batalhão existem duas cadeiras para os irmãozinhos. Naquele local é possível sentir sua presença. A história é verdadeira.
ResponderExcluirO Amigo tem razão. Há toda uma trama envolvendo esses fatos. Um dos objetivos do tipo de texto que apresentamos é exatamente despertar a curiosidade para o tema.
ExcluirLindo texto parabéns Gen.Schons. Abraço.
ResponderExcluirObrigado.
ExcluirPrezado amigo. Excelente texto. Fez com que eu retornasse aos pagos gabrielenses.
ResponderExcluirObrigado. Espero que essa experiência de retorno aos velhos pagos não lhe seja penosa...
ExcluirBelo texto, me transportou como toda boa leitura. Fico ansiando por mais história e estórias.
ResponderExcluirObrigado. Haverá outras, para continuar testando a paciência dos Amigos...
ExcluirExcelente, Gen!
ResponderExcluirSe me permite dizer, o Sr tem uma excelente veia literária...
sobre o relato, confesso que nos primeiros parágrafos, tive que usar o tradutor do "gauchês" para o português....kkk pelos termos típicos da região dos pampas, não tão comuns às demais regiões...
Se os "irmãos" faziam mesmo milagres, nunca saberemos... mas a fama e estórias associadas a eles, essas sim, tinham um efeito concreto nas pessoas, como ocorrido com o Ten Notti.
Com certeza, as praças do então 9º Reg Cav ficaram muito gratas à intervenção e perspicácia do recruta Aprígio, salvando os finais de semana e com o ganho adicional de um "novo" Cmt Pel, doravante justo e dedicado aos seus subordinados (seja por bem... ou por "mal" kkkk !!!!)
grato, Gen, por compartilhar essas histórias da caserna.
Obrigado, Oliveira, pela leitura e pelos comentários. Na verdade, muitos dos recrutas jamais souberam da atuação do Aprígio e os que souberam não lhe atribuíram a menor importância. A transformação do tenente caiu toda na conta dos Irmãozinhos.
ExcluirDigo: Que o texto do 'General Schons' acrescenta de forma primorosa , como poucos na língua portuguesa, elementos de estudo sobre fenômenos linguísticos que envolvem dialetos regionais e contribuem para compreensão histórica social e cultural das diferenças entre os falares urbanos e rurais".
ResponderExcluirEste escrito literário do "General Décio Schons" poderia , e serve ' ipso facto ' para um excelente respaldo Acadêmico ". Cito o trabalho apresentado no Link a seguir:
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i72p63-82
https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/157029
Excluirlink.. Google chrone
Muito agradeço seu comentário que me deixa sobremodo envaidecido. Muito obrigado.
ExcluirDileto, Gen Schons! Excelente texto, muito obrigado por compartilhar destas histórias acontecidas na Terra dos Marechais. Forte abraço!
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário.
ExcluirÉ sempre muito bom ouvir ou ler os causos da caserna. Excelente texto, General, apesar de não ser gaúcho mas por ter minhas origens na Cavalaria, não foi tão difícil entender o texto.
ResponderExcluirÉ muito bom ler um texto bem escrito pois isso é raro nos dias de hoje.
Fraterno abraço!
Obrigado, caro Amigo, pelo seu comentário.
ExcluirCaro amigo, super interessante -e escrita com requintes de perfeição- a estória dos irmãozinhos "afuzilados". É verdade que tive que deduzir o significado de alguns termos que só estão no vocabulário da campanha gaúcha, mas consegui sem problema. Parabéns. Grande abraço! Fernando Goulart
ResponderExcluirObrigado, Goulart, pelo seu comentário. Não deve ter sido difícil para alguém com a sua inteligência deduzir o significado daqueles poucos gauchismos...
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