Viola
Décio Schons
Era o mês de março de 1970 e aquela estava se revelando uma manhã diferente. Logo cedo, o velho Ford do Seu Deoclécio encostara na
estrada em frente à nossa casa e começamos a colocar nossas coisas para dentro
dele. Estávamos de mudança para a cidade.
Meu sentimento não era nem de tristeza nem de
alegria, mas sim de expectativa pelo que a nova vida iria nos trazer, pois,
apesar de muito ouvir falar, não tinha a mínima ideia do real significado daquela
simples expressão: “fulano foi morar na cidade”. Pelo final da manhã, estava
toda a mudança na carroceria do caminhão e fomos chamados a embarcar: o Pai e a
Mãe na cabine e nós, os moleques, na carroceria. Antes da partida, uma série de
recomendações:
-
Segurem-se
bem, meninos, não vão voar daí de cima em alguma curva ou solavanco. E segurem
bem as cadeiras de vime.
Trazia comigo a cachorrinha Viola, mas recebi
ordem terminante de soltá-la no pátio da casa.
-
Larga
já aí. Não há lugar para cachorro na cidade. Já falei com a Comadre Olinda e ela
vem apanhar a Viola mais tarde.
Naquele momento, foi como se um filme passasse
rapidamente na minha cabeça (não sabia o que era isso, pois nunca tinha ido ao
cinema). As imagens foram se sucedendo de forma acelerada, cobrindo os anos em
que tive a Viola como companheira de todas as horas.
Na verdade, não lembro bem de como aquela fox
paulistinha veio fazer parte da vida da família. Lembro dela já em idade
adulta, sempre a nos acompanhar em nossas peraltices, sempre atenta e sempre
companheira.
Viola nos acompanhava o tempo todo, onde quer que estivéssemos, desde que fosse da porta da casa para fora. Nossa Mãe não admitia animais dentro de casa ou da sala de aula. Exceção, só naquelas manhãs muito frias, de geada, em que a cachorrinha ia comigo repontar as vacas e voltava, como eu, tremendo que nem vara verde. Aí sim, podia ficar um tempinho ali no quentinho do fogão a lenha, até que parasse de tiritar.
Quando seguíamos para trabalhar na lavoura que ficava no
topo do cerro bem em frente de nossa casa, era costume fazermos uma parada a
meio caminho para chupar cana, que apanhávamos de uma plantação do vizinho.
Sentávamo-nos sobre um tronco que atravessava a trilha, à sombra de uma
guajuvira, e ali, com nossas xerengas, íamos descascando os gomos de cana que
eram mastigados para extrair a guarapa. Viola ficava sentada à nossa frente,
esperando a sua vez. Mastigava o pedaço de cana que lhe oferecíamos até extrair
todo o suco e jogava o bagaço fora com notável habilidade. Nunca ouvi falar de
outro cachorro que chupasse cana, mas a Viola era especial.
Nas caçadas de periás era quando a Viola se
revelava uma verdadeira estrategista. Ela sabia que estávamos esperando à beira
do trilho, com os bodoques prontos para o abate, e cercava os animaizinhos de
longe, repontando-os em nossa direção. Quando acertávamos a pedrada, ela ia
trazer a periá abatida para junto de nós. Mesmo que estivesse com fome, nunca
nos surrupiou um animal. Esperava pacientemente até o momento em que íamos
limpar a caça para só então saborear as vísceras que lhe jogávamos.
Não será exagero dizer que devo minha vida a ela. Mais de uma vez, percorrendo a trilha à nossa frente, ela deu o alerta para uma jararaca ou cascavel enrodilhada à beira do caminho, pronta a dar o bote. Nessas horas, sua coragem chegava às raias da temeridade, cercando a serpente, ora de um lado, ora de outro, latindo muito alto, preparando a oportunidade para a mordida certeira, normalmente na parte mediana do corpo da inimiga. Tudo se passava em segundos. Viola sacudia a serpente com tanta violência que logo o animal estava totalmente estraçalhado.
Como nada é perfeito toda aquela valentia tinha
um limite: era quando tínhamos que atravessar uma sanga, por mais estreita e
rasa que fosse. Ela, que tinha medo d’água, armava uma confusão muito grande
até que um de nós voltasse e a apanhasse no colo para atravessar pela pinguela.
Aqueles anos passados à beira do Toropi Mirim
foram maravilhosos. Estava com minha família, tinha as irmãs e os irmãos, tinha
bons amigos (e alguns inimigos não tão bons assim). Tínhamos as nossas caçadas,
as nossas pescarias, tinha a escola onde minha Mãe e minhas Irmãs eram as
professoras, tinha os bailes para dançar, tinha os jogos de bola nos finais de
semana – e tinha a Viola. Era como se ela fosse parte da família.
De repente, foi como se uma borracha apagasse
tudo. Naquele dia tão importante de minha vida, tive que deixar a Viola para
trás. Com ela, também ficou por ali um pedaço de mim mesmo.
Quando, depois de umas boas maniveladas, o
caminhão pegou e começou a descer a ladeira, a Viola nos seguiu o quanto pôde,
ganindo e chorando alto. Também comecei a chorar, mas ninguém percebeu, porque
a essa altura o caminhão já ganhava velocidade e o vento embaçava os olhares de
todos nós que viajávamos na carroceria. Logo a cachorrinha desapareceu em meio
à poeira da estrada de chão.
Nunca
mais vi nem tive notícia da Viola. Só voltei àquele local quarenta anos mais
tarde, para descobrir que já não havia ali nenhum testemunho da minha infância. Os
vizinhos haviam sido, como nós, levados pelo êxodo rural, saberia Deus para
onde. A casa onde morávamos havia desaparecido e o mato tomava conta do local.
As lavouras abandonadas e transformadas em matagais, a escola, a capela e o
salão de bailes em ruínas, nada ali poderia dar uma indicação das histórias de
vida que naquele ermo haviam tido lugar.
Só
então percebi que, juntamente com a Viola, um mundo inteiro havia mudado de
dimensão e só existia, de fato, em minha memória.
Schons, ao ler tua historia sobre a Viola, me deu uma tristeza bem grande. Lembrei-me de ja ter deixado alguns bichinhos de estimaçao pelo caminho. Hoje nao faço mais isto... Talvez tenha me tornado melhor...
ResponderExcluirCom certeza, Amiga. Estamos aqui para evoluir. Obrigado pelo seu comentário.
ExcluirLuiz Carlos Ramos, Parabéns General pela excelente narrativa. Minha continencia de resprito
ResponderExcluirObrigado. Um abraço.
ExcluirE assim nos tornamos fortes e sensíveis ! Somos nós sem mimimis …
ResponderExcluirTem razão. Crescemos, sim, um pouquinho a cada dia. Para isso estamos aqui. Obrigado por comentar.
ExcluirQue história linda General parabéns e aproveito para desejar a maior felicidade do .mundo para Raissa e fico na tristeza de não poder estar presente devido a falta de companhia saudades do tempo bom
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Estamos todos juntos nos nossos pensamentos.
ExcluirQue história mais linda, contada com o coração. A gente não consegue segurar as lágrimas. Obrigada.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário. Um abraço.
ExcluirViola apesar de não ter provavelmente nenhuma foto para registro de sua imagem, foi pintada com muito beleza, saudade e principalmente amor por vc. Eu desde que os meninos tinham 6 anos tenho cachorro e quem tem e cuida sabe como eles são especiais. Vou tentar escrever algumas linhas de cada um deles para que o tempo não apague história de amor e lealdade que eles constroem conosco. Schons obrigado por compartilhar. Abraços.
ResponderExcluirMuito obrigado, caro Amigo Jaétis. Um forte abraço.
ExcluirBom dia, General!
ResponderExcluirNão conheci a cadelinha Viola. Mas pela narrativa, já tenho o perfil dela bem gravado. A imagem da cobra enrodilhada dormindo no caminho é apavorante. Certamente o animal estava encarando de frio, esperando uma réstia de sol.
Mas seu texto me fez viajar em pensamento e ir lá no Toropi Mirim, onde nos criamos. Vc saiu de lá em 70 e eu fiquei até completar 18 anos, quando fui servir, 1.974, em Santa Maria.
Aquela serra tem uma energia mística. Quando me sinto meio acabrunhado, vou até lá e volto com muita energia. É como se fosse trocar energia ruim por energia boa.
Ontem pensei no amigo, ao visitar a cidade de Marechal Deodoro, onde fica a Praia do Frances, nas Alagoas. Deodoro nasceu numa localidade muito pobre e distante da cidade grande. Tornou-se o programador da República, derrubando o império. Foi também o primeiro presidente do Brasil. Seu vice e segundo presidente, Marechal Floriano Peixoto, guri pobre, criado por um tio, nasceu na periferia de Maceió, hoje Praia de Ipioca.
E vc, da Serra de Toropi Mirim, saiu para ser um dos mais brilhantes generais do EB.
Sendo espírita, talvez possa identificar como brotam essas energias que conduzem certos homens que saem do nada e chegam ao topo.
Cinchado abraço!
Obrigado, meu Amigo, pela gentileza de seus comentários. Sim, o tempo que vivi naquele pequeno povoado foi um período muito feliz. Minha Mãe, professora municipal, era transferida com frequência, por motivos os mais diversos e interessantes. Nasci e vivi até os 3 anos na Linha Canoas e, por incrível que pareça, tenho muitas lembranças de lá. Mas o tempo que mais me marcou, provavelmente por tê-lo vivido de forma tão intensa, foi esse em que moramos no Toropi Mirim.
ExcluirTriste a história, e a Viola não viola a normalidade da vida: nasce, cresce e morre. Mas quando nesse transcurso da vida há uma ruptura de convivência com algo de estimação, o coração sente! Acreditamos que essa coletânea de belas histórias dariam um bom livro! (Antonio Carlos).
ResponderExcluirObrigado, caro Amigo Antonio Carlos. A sugestão é tentadora, mas falta muito para chegarmos lá. Um abraço.
ExcluirQue bela história meu caríssimo amigo, vem na memória o gosto da infância que não volta mais mas, tb momentos vividos, corriqueiros, pitorescos e felizes.!
ResponderExcluirFraterno abraço 🤗
Muito obrigado pela gentileza de seu comentário. Um abraço.
ExcluirObrigada pelo lindo texto, me fez chorar, mas são lágrimas de amor.
ResponderExcluirObrigado, cara Amiga.
ExcluirInteressante como a história contada e o que ocorreu com a Viola deixa claro que, por muitas vezes, a vida nos propõe trocas difíceis para seguirmos nosso caminho. Fica bem claro, General, que a Viola, até hoje, está muito presente em sua vida. Que ela tenha tido, dentro do possível, uma continuidade de uma vida feliz como teve com sua Família. A vida, realmente, nos propõe ou impõe trocas difíceis. Fraterno abraço!
ResponderExcluirCaro Amigo Prado, você tem razão. O desenrolar de nossa vida é consequência das escolhas que nós próprios fazemos ou que outros (muitas vezes os nossos pais) fazem ou fizeram por nós. Obrigado pelo seu comentário.
ExcluirBelos recuerdos meu amigo! Mais de 40 anos depois também voltei ao lugar da minha infância, o no velho Capão da Madeira, quase na costa do arroio Upamaruti (onde dei as primeiras braçadas), limite de municípios Sant'Ana do Livramento e Dom Pedrito. Só vi uma imensa lavoura, mas encontrei parte dos degraus da porta da frente do velho bolicho do finado Miguel Cezar, meu pai. Bati um retrato com os dois irmãos que me acompanhavam. Menos mal que levamos os nossos cuscos e a velha gata três pelos na mudança.
ResponderExcluirVocê deve ter tido, como eu tive, a sensação de que o mundo de sua infância havia migrado para uma outra dimensão. Obrigado, caro Amigo, pela gentileza de seu comentário.
ResponderExcluirEsse é depoimentos de tempos bons e felizes que a infância nos deixou. Lendo a gente se transporta para teu relato. Nós tínhamos uma cadela que se chamava Miragaia, por que desse nome não sei, mas fecho os olhos e vejo ela; branca e preta, era vira-lata mais faceira que conheci. Obrigada por fazer relembrar uma parte da minha infância.
ResponderExcluirMuito obrigado pelo seu amável comentário.
ExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAs histórias são muito boas!! Tomara que vire livro!!
ResponderExcluirQuem sabe, Vianna. Ainda falta muito...
ExcluirDe vez em quando o nosso General nos brinda com um belo texto. Hoje me surpreendo com algo que também vivenciei. A perda de um companheiro, um parceiro, um amigo cachorro. Quanta falta esse amigo faz. Quantas histórias ainda seriam escritas se a convivência continuasse. Muito obrigado pelo belo texto. Fraterno abraço
ResponderExcluirObrigado, caro Amigo, pela gentileza de seu comentário. De fato, aprendemos muito com as perdas...
ExcluirBelas recordações de tempos diferentes que marcam nossa trajetória na infância! Viajei no tempo com sua narrativa general ! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado pelo seu comentário.
ExcluirPerfeita a história da nossa companheirinha VIOLA, meu irmão. História cheia de lembranças, saudades e tristeza no seu final. Ela estava presente em tudo. Via, ouvia e seus olhinhos mostravam que entendia tudo.
ResponderExcluirUm dia nossa irmã chegou de São Pedro do Sul ,muito feliz por haver comprado um rádio a pilhas. Pai logo avisou : Não quero barulho na hora do nosso descanso.
Na frente da casa,havia um capão de mato, do outro lado da estrada.
Então organizamos lá um espaço agradável, para ouvir música,com bancos de pedra e tábuas. Serviço da casa pronto, os pais no descanso pós almoço , eu e a irmã pegávamos nossos bordados, o rádio e todos íamos para lá . A VIOLA era só alegria, latia,pulava e seus olhinhos brilhavam. A irmãzinha menor era encarregada de trocar de estação, quando terminava a música, propaganda não, só música.
Foi um tempo feliz, porque estávamos todos juntos.
Araci
Sim, minha querida Irmã. Éramos de fato muito felizes, pois nossa felicidade não exigia muito para se fazer presente.
ExcluirAquele rádio Teleunião, comprado pela nossa Mana com seu primeiro salário de Professora, foi também a nossa primeira janela para o mundo.
Belas lembranças...
Caríssimo Amigo. Um contista de qualidade, de pena leve e solta. Linguagem fluente. Agradável leitura. Há algum tempo, dei-me conta de que é preciso registrar fatos da história da família, para que o conhecimento não se acabe conosco. Postei 2 publicações em brennerdesantamaria.blogspot.com
ResponderExcluirParabéns, Professor Brenner. Obrigado pelas belíssimas e enriquecedoras publicações em seu blog. Um forte e saudoso abraço, caro Amigo.
ExcluirBah não consegui parar de ler,a estória da Viola,a pesar do adiantado da madrugada, vou mostra lá p Marlene, ela também tinha sua cadela companheira
ResponderExcluirObrigado, caro Amigo, pelo seu comentário. Um abraço.
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