Nossa Escola

 Décio Luís Schons (*)

Cinquenta anos atrás, numa noite de fevereiro de 1973, adentrei pela primeira vez o portão das armas da EsPCEx. Comigo estavam mais dois candidatos, também oriundos do Rio Grande do Sul.

Depois de quase dois dias de viagem de ônibus, o cansaço era muito grande. Mesmo assim, mantivemos os olhos bem abertos no percurso entre a Rodoviária de Campinas e a EsPCEx, a bordo da viatura “pata choca” que nos havia ido apanhar. Já era noite alta quando fomos desovados ao lado do Corpo da Guarda e o sargento que nos acompanhava orientou-nos pelos longos corredores escuros em direção ao alojamento da 1ª Companhia de Alunos. Ali foi designado para cada um de nós um armário metálico no vestiário e uma cama no alojamento situado no 2º piso.

Depois de uma ceia composta de um pão francês com mortadela e uma caneca de kaol(1) morno, fomos liberados para descansar.

Dentre os estranhos que encontramos naquela noite nas dependências da Companhia Águia estavam alguns dos futuros colegas e amigos que nos acompanham desde então. Lembro de colegas em uniformes diferentes, que, depois vim a saber, eram candidatos oriundos dos colégios militares.

Os dias seguintes foram de muito aprendizado. A Escola era um mundo desconhecido, especialmente para mim, que nunca tivera qualquer contato com a instituição militar.

Estranhos sotaques povoavam as conversas, as aulas, as sessões de instrução, pois ali estávamos jovens de todas as regiões do País, de todas as classes sociais, convivendo no mesmo espaço, submetidos à mesma disciplina, aprendendo os mesmos princípios, preparando-nos para o serviço da Pátria.

Os trotes dos veteranos(2)  tiveram o efeito de fortalecer a união entre os colegas recém-chegados, movidos pela ameaça comum, já que esses trotes nem sempre eram engraçados.

Alunos repetentes (os repes) dividiam-se no trato que nos dispensavam: desde a amabilidade e a ajuda constante que deram origem a amizades para a vida toda até o tratamento não tão amigável que alguns deles dedicavam à “bixarada”.

Da parte dos professores, percebíamos muita exigência e rigor no comportamento em sala, no ensino e nas provas. Alguns demonstravam estar ali apenas para ganhar o pão de cada dia, mas em sua maioria eles evidenciavam dedicação e interesse pelos alunos, buscando inclusive socorrê-los em momentos difíceis, a exemplo do que aconteceu comigo(3).

Os instrutores nos tratavam com o rigor esperado. Não havia favorecimentos nem perseguições, mas a aplicação pura e simples da lei, dos regulamentos, das normas, em obediência àquele princípio que logo fomos forçados a incorporar: “escreveu, não leu, o pau comeu!”

Aos poucos, fomos nos adaptando ao sistema, aprendendo os segredos e as expressões do dia a dia da Escola. Demoramos um pouco a descobrir que o Sargento Gili e o “Sargento Iante” eram a mesma pessoa(4).

Chegou também o dia tão esperado em que deixamos de ser bixos e passamos a ser calouros, com a aprovação da maioria da turma para o 2º ano. Para trás ficaram alguns amigos, destinados ao “curso normal”, em quatro anos – era a renovação do efetivo dos repes. Outros, que não se achavam vocacionados, pediram desligamento e foram brilhar em outras profissões, sem, porém perder o vínculo anímico com a Escola e com os amigos.

Também o Comandante agora era outro, circunstância que nos trouxe a noção da diferença que essa figura emblemática pode fazer na vida de seus subordinados, para o bem ou para o mal.

Fomos naquele ano conclamados pelo nosso Comandante a “conquistar” Campinas, missão que cumprimos com muita satisfação. A Escola passou a participar da vida da cidade e a cidade correspondeu fazendo uso dos espaços da Escola para diversas atividades educativas e culturais, numa bela demonstração de como deve ser um relacionamento ganha-ganha.

No terceiro ano, veteranos que éramos, fomos chamados a servir de exemplo aos bixos e aos calouros. Também nos foi passada a lição de jamais nos aproveitarmos de uma posição de ascendência sobre pares ou subordinados para outra coisa que não fosse o cumprimento da missão. É desnecessário dizer que o trote foi terminantemente proscrito. Veteranos e calouros que não entenderam a lição tiveram a oportunidade de refletir sobre ela no isolamento da sala de estado-maior.

Aqueles três anos passaram depressa e dali a pouco estávamos a caminho da Academia Militar das Agulhas Negras. Ao cruzar pela última vez como aluno os portões da nossa amada Escola, não imaginava o número de vezes que retornaria, agora não apenas para aprender, mas também para ensinar, orientar, comandar ou para simplesmente matar saudades.

Ao longo dos anos, tive a honra de ser instrutor de alunos e comandante da Escola. Durante esses períodos, como de resto em toda a minha vida profissional, as lições ali aprendidas como aluno sempre estiveram presentes e orientaram minha conduta.

Hoje na reserva, a pergunta que sempre me vem à mente é sobre o que posso fazer para retribuir, pelo menos parcialmente, tudo quanto recebi da Escola. A Associação de Ex-Alunos e Amigos da EsPCEx (AEsPCEx) aparece como um caminho, um roteiro para trabalhar nessa direção.

Fica, desse modo, o convite para outros ex-alunos que se sintam agradecidos pelo que receberam durante seus tempos como alunos, ou para as pessoas que, movidas por qualquer razão, dedicam amizade à Escola e ao que ela representa, que se juntem a nós.

Aos interessados, aí vão os nossos canais de divulgação: 

- Página da Associação: https://www.aespcex.com.br 

- Instagram: https://instagram.com/aespcex?igshid=YmMyMTA2M2Y=

- Facebook:  https://www.facebook.com/aespcex  

- Telegram: https://t.me/+WUIVC6kOoGhkNDUx

A AEsPCEx os espera de braços abertos. Sejam bem-vindos.

(*) O autor é General de Exército na Reserva

 

Observações:

(1) Polidor de metais muito utilizado para polir a fivela do cinto do uniforme de uso diário, cuja aparência lembrava a do líquido servido na ceia.

(2) Aluno do terceiro ano; o aluno do 2º ano era chamado “calouro”; já o aluno do 1º ano era simplesmente o “bixo” e a turma toda constituía a “bixarada” ou o “bixaral”, dependendo da preferência do trotista da vez.

(3) Um exemplo da dedicação dos professores consta nesta pequena história: https://sobrecoisaseloisas.blogspot.com/2022/01/como-me-tornei-espirita-breve-historia.html

(4) O Sargento Gili era o Sargenteante da 1ª Companhia de Alunos. Ninguém nos explicou o significado da palavra “sargenteante”. Então, quando o Tenente instrutor nos avisava para “falar com o Sargento Gili, o Sargenteante”, nós entendíamos: “falar com o Sargento Gili e o Sargento Iante”. Demorou mais de mês para concluirmos que se tratava de uma única pessoa.


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