O Corote

                                                                                                                                         Décio Luís Schons

O Corote era um andarilho que passava uma boa parte do tempo na casa de um colono nosso conhecido, na mesma localidade onde morávamos. Como todo bom andarilho, ninguém sabia seu nome verdadeiro, de onde era, quem eram seus pais ou o que havia feito na vida até aquele momento. Alguns diziam que era um criminoso foragido da polícia, e de fato sempre que havia alguma atividade festiva em que os brigadianos da Vila do Toropi compareciam, o Corote desaparecia. Ele dizia que era pelo medo que tinha de armas.

O certo é que o Corote chegava sem avisar, se aboletava no galpão do nosso vizinho e lá ficava por tempo indeterminado. Ajudava nos trabalhos da casa, repontava as vacas para tirar leite, carregava lenha para o fogão, buscava água no poço para a dona da casa cozinhar. Quando a família sentava para comer, ele passava pela janela, olhando para dentro, puçuqueando um prato de boia. A dona da casa sempre o atendia com as sobras, que normalmente eram fartas: abóbora, batata doce, mandioca, polenta, feijão cavalo, carne de porco...

Da mesma forma como chegava sem avisar, também não dava indicações de quando ia partir. Anoitecia no galpão, próximo do galinheiro, e no dia seguinte já estava na estrada, acho que nem ele sabia com que destino.

Foi num baile no salão do Genebaldo que tudo aconteceu. Claro que o Corote nunca foi convidado nem nunca entrou nos bailes do Genebaldo, mas naquela noite nós percebemos que ele andava rondando por perto, olhando interessado pela porta. Como de costume, aprontamos algumas diabruras com ele, que se fazia de assustado quando lhe apontávamos alguma coisa que parecesse uma arma de fogo – podia ser um pedaço de madeira ou um cabo de guarda-chuva. Mas logo começou o baile e nossa atenção foi desviada para o gaiteiro e para os casais que se apressaram a saracotear logo na primeira marca.  

O salão do Genebaldo era todo de madeira, construído em terreno inclinado e com um espaço aberto sob a cozinha. Esse cômodo, bem espaçoso, era também o ponto de reunião das moças dançadeiras. Ali elas se reuniam para comentar sobre esse ou aquele rapaz mais ou menos elegante ou para tomar um mate doce enquanto descansavam depois de um xote afigurado ou de um vaneirão. Era também o lugar para onde elas corriam apressadas depois de darem carão em algum moço com quem não queriam dançar.

É importante aqui ressaltar que o assoalho da cozinha era feito de tábuas, com frestas bem largas entre elas. Quem construiu a casa jamais poderia imaginar o que iria acontecer naquela noite por causa desse, digamos, detalhe de acabamento.

O baile já entrava pela madrugada quando nós, moleques, percebemos que o Corote estava se enfiando por debaixo da casa, exatamente na área da cozinha. Não atinamos, de imediato, com a motivação desse ato. Será que ele vai dormir ali, com esse barulhão? – foi a pergunta que nos ocorreu. Mas não demorou muito para um menino mais velho falar baixinho:

– Acho que ele quer bombear as pernas das moças...

Fui encarregado pelos mais velhos de ser o portador da informação até as moças na cozinha. A contragosto e com medo de levar alguns puxões de orelha por entrar em lugar reservado às meninas, fui rapidamente falar com minha Irmã, que naquele momento deliciava-se com uma cuia de mate doce que estava sendo servido por uma amiga.

As moças me ouviram, a princípio com incredulidade, mas não demorou muito para a história fazer sentido. Ato contínuo, afastaram-se para um canto e cochicharam por alguns momentos, feito o que fui chamado para receber a seguinte ordem:

– Vai agora lá para o pátio e sinaliza bem certinho o lugar onde o Corote está parado. Vamos ficar te olhando pela janela.

Quando saí da cozinha, pude ver que estavam colocando a chaleira, que já estava chiando, bem em cima do fogo aberto, após retirarem duas roldanas da chapa do fogão.

Já agora no pátio, coloquei-me em uma posição em que pudesse ser visto da cozinha e de onde também pudesse enxergar o Corote, que a essa altura já estava acocorado debaixo do assoalho, num lugar bem escuro. Minha tarefa foi facilitada pelo fato de ele estar pitando um palheiro. Então fui sinalizando com as mãos: para a esquerda, para a direita, um pouco para cá, um pouco para lá, até que elas estivessem colocadas exatamente sobre a posição ocupada pelo Corote. Não pude perceber exatamente o que aconteceu no interior da cozinha porque naquele momento algumas lamparinas tinham se apagado devido a uma aragem forte que tinha começado a soprar. O que todo mundo pôde ouvir, menos os que estavam mais perto da cordiona, foi o urro desesperado do Corote, seguido pela sua corrida desabalada em direção a uma roça de milho que havia nos fundos da casa.

Na segunda-feira, nossa Mãe, já sabedora do acontecido, pediu para minha Irmã chamar as moças que estavam no baile (todas ainda eram ou já haviam sido suas alunas) para uma conversa. Com o ar severo que lhe era peculiar, nossa Mãe foi muito enfática:

– Olhem aqui vocês, Gurias, o que vocês fizeram é o cúmulo da crueldade! Como é que me derramam uma chaleirada de água quente em cima do rapaz? Isso não se faz nem com um cachorro!

As moças concordaram (não seriam doidas o suficiente para discordar), mas uma delas deu uma resposta que fez com que todos nós, inclusive nossa Mãe, tivéssemos que cair na gargalhada:

 – Sim, Professora, é que os cachorros também se escondem debaixo do assoalho, mas não ficam olhando para as pernas da gente...

Nunca mais encontrei o Corote ou ouvi falar dele.

Comentários

  1. Havia lá no Capão da Madeira, 3° subdistrito de Sant'Ana do Livramento algumas figuras com as mesmas características do Corote. As donae de casa tinham muito medo do Beto Azul, um negro corpulento, com os dentes alvos que assombrava as donas de casa quando os maridos andavan trabalhando fora, esquilando, tropeando ou alambrando. Uma vez oassou lá em casa, à noite. Os cachorros bateram, o pai viu que ia em direção a casa da nossa avó que estava sozinha o pai montou no sogueiro, em pelo, e saiu atrás. Voltou de madrugada, calado. No dia seguinte correu a notícia que o Beto Azul havia morrido afogado no arroio Upamaruti. O compadre do pai, o Mulato, insinuava que o pai havia matado o negro. Ele jurava que não. Todos edtão no plano espiritual. Fucou o fato e a dúvida.

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  2. Essas passagens da Vila de Toropi merecem um livro.

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  3. Conto muito bem escrito pelo amigo Schons, relatando história de um deficiente mental que recebeu água quente em seu corpo por uma outra deficiente mental, que não mediu as consequências do seu ato.
    Fora isso, são lembranças de nossa vida.

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    1. Bom dia, Amarante. Creio que as moças tenham, sim, pensado nas consequências do que decidiram fazer. A alternativa era chamar os homens para tomar conta do problema e nesse caso o Corote teria provavelmente ido para o cemitério em vez de ir para o milharal.

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  4. A história do Corote faz parte da nossa juventude lá no interior. História muito bem contada pelo meu irmão, nos seus mínimos detalhes curiosos e engraçados. História real que despertou em mim lembranças e saudades.
    O Corote, figura folclórica, conhecida por todos e que não prejudicava ninguém. Passava quase todos os dias em frente a nossa casa. Penso que a maioria das comunidades do interior tem uma figura assim. Aqui em minha pequena cidade tínhamos o Pedro louco.
    Lembro bem desse famoso baile. Todos os bailes eram acontecimentos importantes, mas esse ficou foi especial e ficou na história.
    Sempre me perguntava,como ficou seu rosto? Já que não servia prá bonito.
    Lembro que a mãe não gostou da atitude e porisso deu um "trote" nas gurias.
    E, realmente ninguém mais o encontrou.

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    1. Obrigado, Mana. Você é que deveria contar esses causos, pois certamente os tem em maior quantidade e com riqueza de detalhes em sua mente privilegiada.

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