O Pequeno Morto

 Décio Luís Schons

O caixãozinho ocupava o centro da sala, apoiado sobre duas cadeiras de assento de palha. Uma faixa de cetim branco emoldurava o rostinho muito redondo e pálido do bebê que parecia dormir.

Em torno, as pessoas iam se revezando nas cadeiras de madeira e assento de palha trançada. Sentavam-se com uma expressão séria e triste. Entreolhavam-se em silêncio, como temendo causar sobressalto ao pequeno morto, caso levantassem a voz.

– Será que esse inverno ainda vai longe? – a pergunta feita em voz baixa ficou suspensa entre a fumaça dos palheiros, sem resposta.

Lá fora fazia frio. Uma lufada de vento esgueirou-se por uma fresta da parede para apagar a lamparina e duas das quatro velas que enquadravam o caixãozinho. Agora só as pequenas chamas das velas restantes, dançando loucamente com a aragem, quebravam a escuridão.

Nhá Caruca, a parteira e benzedeira do lugar, estendeu a mão e apanhou uma das velas para tornar a acender a lamparina, entre olhares de aprovação. As mulheres encolheram-se nos xales de lã e os homens em seus bicharás.

O silêncio da sala contrastava com as vozes e alguns risos acanhados vindos da cozinha, de mistura com um cheiro forte de café coado e bolo quente.

Foi então que a porta do quarto se abriu para dar passagem a uma mulher enlutada, encolhida em sua manta de malha e véu negros a lhe cobrirem a cabeça e os ombros. Era Sia Ninoca, a mãe do pequeno morto. Todos se levantaram, os rostos tristes expressando tensão. Era chegada a hora da despedida materna.

As crianças que se encontravam nas outras dependências da casa ou brincando de esconde-esconde no pátio acorreram sem que ninguém as precisasse chamar. Era como se adivinhassem o momento de culminante tristeza daquela noite.

Sia Ninoca, amparada por duas moças também chorosas, aproximou-se do caixão, apoiando-se nas cadeiras que lhe serviam de base. Retirou o véu diáfano que cobria o rosto do filho e aquele que lhe encobria o próprio rosto e pronunciou, com a voz dilacerada que só as mães que perdem um filho criança podem emitir: “adeus, meu filho – adeus para nunca mais”.

Lágrimas despencaram dos olhos de homens e mulheres. Poucos conseguiam conter os gemidos de dor e os soluços. O choro convulsivo propagou-se. As crianças a tudo assistiam com cara de bobas, sem nada entender.

Nas demais dependências da casa, as atividades cessaram. As vozes alegres das moças que preparavam o café, as cucas e os bolos, silenciaram.

A brisa cedera lugar a um vento forte, quase tempestade. A poeira entrava pelas frinchas. Os mais velhos tossiam. Algumas crianças começaram a chorar alto.

Sia Ninoca permaneceu ali por alguns momentos que pareceram eternos, os olhos fixos no pequeno rosto de cera que adquiria tons azulados à luz mortiça da lamparina. Depois, já sem forças para chorar, retornou ao quarto.

Aos poucos, a sala foi-se esvaziando. Somente Nhá Caruca e a filha Dimenciana permaneceram sentadas, os cigarros de palha consumindo-se entre os dedos. A velha pensava em quantas crianças já havia visto partir assim, depois de terem vindo ao mundo por suas mãos. A ela cabia a tarefa alegre de fazer com que nascessem e depois a triste sina de prepará-las para a última jornada – ofício antigo, que aprendera da mãe, que por sua vez o aprendera da avó. Na marcha louca da vida, velórios e fandangos, tristezas e alegrias são apenas circunstâncias.


Comentários

  1. É bonito o texto...mas bem real há tempos...já vi isso pessoalmente..

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  2. Um causo triste, contado com muita sensibilidade, quem teve ou tem contato com às pessoas da época nos vem a lembrança dos causos dos nossos avós...

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  3. Tocante texto, bom amigo. Faz-nos pensar sobre a dimensão da Vida. Eu sepultei um filho. Inda que faça parte do ciclo da existência, a ninguém desejo experimentar isto.

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    1. Obrigado pela gentileza de comentar. Desculpe se o texto lhe trouxe lembranças tristes.

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  4. Um causo que muitos já passaram, eu fui uma delas. Um grande abraço, amigo

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    1. Obrigado, cara Amiga. Desculpe, mas a ideia não era lhe trazer lembranças tristes.

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  5. Décio, você me fez fazer uma viagem aos meus tempos de criança. Acho que eu tinha 6 para 7 anos. Foi um misto de tristeza, curiosidade e espanto ver aquele caixão branco bem pequeno com um bebê dentro. Uma vizinha na frente da minha casa perdeu o filhinho. Foi assim mesmo, o caixão sobre duas cadeiras numa sala bem pequena. Somente nós, algumas crianças e a mãe, presentes. Ainda guardo essa lembrança.

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    1. São lembranças que nos marcaram e que definiram, de algum modo, o que seríamos a partir dali. Obrigado por comentar.

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  6. Eu passei por esse processo desta vida no falecimento de meu filho quando num transplante de cornea deu choque anafilático.Ador de um pai qdo ele eu ,nos levantavamos cedinho com o toque de alvorada no quartel para mais uma jornada cotidiana.Quando tocava a corneta dias apos dias,não tinha mais meu companheiro.Até hoje sinto a saudade de um grande ser humano.

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    1. Muito triste, com certeza. Mas, segundo o que entendo, trata-se apenas de separação física temporária. Na verdade, nunca nos separamos verdadeiramente daqueles a quem amamos. Eles vivem em nossas memórias, em nossos corações e também na certeza do reencontro.

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  7. Já passei por situação semelhante. A morte de um bebê é sempre algo marcante na vida de qualquer um. O Causo me fez viajar para aquele triste momento.

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    1. Desculpe se o o texto lhe trouxe à mente esse momento triste. Obrigado por comentar.

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  8. Onde a ficção se funde à realidade em algum recanto saudoso.

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  9. Uma história triste, mas que faz parte
    da vida. É mais ou menos parecida com o que ocorre em todo país.

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  10. Lembrei-me das crônicas de autores da nossa literatura brasileira. Esses são os textos mais interessantes que gosto de ler.

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  11. Araci Maria Schons Torres
    História real e muito triste que marcou tua vida meu irmão,contada com muita sensibilidade e emoção. Serviu para me transportar a um passado distante com acontecimentos iguais que marcaram minha memória para sempre. Nossa mãe, Prof.Clara,como líder na comunidade, nessa s ocasiões assumia o conforto à família, as orações, a confecção da mortalha. E nós, ainda pequenos, ficávamos acompanhando tudo com tristeza, curiosidade e sem entender nada. A cabeça cheia de perguntas que o vento levava.

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    1. São mesmo muitas histórias, quase em sua totalidade perdidas para sempre. Por isso é preciso que aqueles de nós, em cujas mentes algumas delas ainda perduram, as ponhamos no papel (ou na tela do computador), para que pelo menos parte dessas vidas seja recordada e valorizada. Nossa querida Mãe é um exemplo: quem já teve a ideia de escrever a sua biografia, ou pelo menos um breve texto em que seu valor e suas obras recebessem o merecido destaque?

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  12. Tristes mas lindas memórias

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    1. Obrigado, caro Amigo, pelo seu comentário.

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