BALDO E ERMELINA

 

Décio Luís Schons

Ermelina era uma menina-moça morena muito bonita e admirada por todos do lugar pela educação e habilidades na cozinha e nos bordados. Tinha quatro irmãos mais velhos, muito ciumentos, que a mantinham sob estrita vigilância. Isso, porém, não a impedia de corresponder aos olhares enamorados de um moço corpulento e bonachão chamado Baldo.

Baldo era apaixonado por Ermelina. Nos bailes de salão, dançavam a rancheira e o xote carreirinha e divertiam-se muito. Nós, meninos sapecas, prestávamos muita atenção na maneira como o Baldo, muito mais alto que a Ermelina, segurava a mão dela bem na vertical, fazendo com que a moça mostrasse um bom pedaço das pernas, do joelho para cima, enquanto dançavam.

Para nós, o casamento dos dois era uma questão de tempo, apesar da falta de entusiasmo da família da Ermelina por aquele relacionamento. Daí a surpresa quando correu a notícia de que ela iria se mudar para a cidade, para trabalhar como empregada na casa de uma família abastada de São Pedro do Sul.

Logo após a mudança de Ermelina, Baldo colocou os reduzidos trastes numa mala de garupa, montou o seu tobiano(1) e partiu, não sem antes empinar o cavalo e fazer algumas escaramuças em frente ao bolicho do Seu Pacheco, por quem não tinha lá grandes simpatias.

O tempo passou sem que tivéssemos qualquer notícia dos jovens, a não ser por alguns boatos de que Ermelina estaria trabalhando numa casa de tolerância, mas nada disso foi confirmado. Até que, sem qualquer informação preparatória, chega a notícia de que ela havia falecido em circunstâncias não explicadas.

O corpo foi trazido para a nossa localidade, sabe Deus com que sacrifício, pois as estradas estavam intransitáveis naquele inverno frio e muito chuvoso. O caixão chegou à tardinha, com a recomendação expressa de não ser aberto. O velório teve que ser apressado, por motivos óbvios, de modo que o sepultamento fosse conduzido logo no início da manhã seguinte.

Acompanhei minha mãe, que era a professora da localidade, até o velório da pobre moça. A família parecia conformada com a perda. Nada foi falado sobre as circunstâncias do falecimento. Minha mãe, que também era catequista, puxava o terço em favor da alma da Ermelina, e assim o velório foi avançando, à feição de tantos outros a que já havíamos comparecido. As crianças brincavam no pátio, as moças preparavam café e algum quitute na cozinha.

Por volta da meia noite, o ruído de um cavalo a galope chamou a atenção de todos. Saímos rapidamente para ver de quem se tratava e logo foi possível identificar a figura corpulenta do Baldo, apeando do tobiano e amarrando o animal a umas argolas pendentes de um velho cinamomo. Feito isso, ele se dirigiu a passos rápidos para a sala do velório, balbuciou um buenas noites a todos e desandou a chorar.

Enquanto ficou só no choro, minha mãe e as demais pessoas limitaram-se a assistir. Um amigo do Baldo tentou consolá-lo, mas nesse momento ele começou a falar em altos brados sobre a injustiça dessa morte para ele e para a família e de como Deus era insensível ao permitir tamanho mal. Senti nesse momento que minha mãe iria intervir e foi o que ela fez.

Minha mãe levantou-se da cadeira, aproximou-se do Baldo e disse com a voz calma e severa que era sua característica:

- Olha, Seu Baldo, o Sr já falou bastante, agora chega. É melhor o Sr se acalmar.

Baldo não tomou conhecimento do conselho e continuou com o berreiro:

- Por que foi acontecer isso comigo? Eu sou um índio pobre!...

Minha mãe aguardou um pouco mais, esperando o resultado de seu conselho. Ao ver que suas palavras não surtiam efeito, ergueu a voz para o mesmo nível dos lamentos e disse:

- Calma, Seu Baldo, calma. Isso não é nada!

No silêncio que se seguiu, olhei em volta e percebi em todos um ar de indisfarçável incredulidade: como assim, morrer não é nada? Mas ninguém disse uma palavra.

Seja como for, o fato é que, a partir daquela frase lapidar, Baldo foi aos poucos voltando à calma. Daí foi chegando para um canto da sala e lá ficou chorando, sozinho, o pobre rapaz.

Quando, já depois da meia noite, voltávamos a pé para casa, percebi que minha mãe ria sozinha, à socapa. Perguntei de que ria e ela respondeu:

- Que rata(2) que eu dei! Imagina só, dizer que morrer não é nada. Mas não me aguentei ao ver aquele baita marmanjo se exclamando que nem criança...

 

    (1) Tobiano - adj. e s. m. || (Bras., Rio Grande do Sul) cavalo cujo pelo apresenta manchas brancas em fundo escuro ou vermelho.

                    (2) Rata - Bras. Pop. Gafe, mancada: Deu uma rata ao trocar o nome dos professores.

 

Comentários

  1. Uma história muito pitoresca…adorei!🤗

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  2. Muito boa General. Acontece muito no interior. Os velórios muitas vezes são animadíssimos, com café, bolo frito e até cachaça. Um abraço.

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  3. Desculpa o anonimato: Sergio de Carvalho Gomes

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  4. Elas tinham umas saídas bem características. Sempre resolviam.

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    1. Verdade. Provavelmente porque não tinham alternativa. Precisavam ser fortes - e como eram!

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  5. Amigo Schons, Deus lhe deu o dom de contar uma boa história. Isto encanta, sua história cativa.
    Siga assim amigo. Histórias levam mensagens pela porta dos fundo. Parabéns 🤠👏

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  6. Estaria a cara professora filosofando? Imagino as indagações nos rostos dos presentes rs Esses causos me fazem viajar no tempo.

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    1. Creio que o comentário a seguir, de autoria de minha irmã, responde à sua pergunta. Obrigado pelo seu comentário.

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  7. História muito bem contada, nos mínimos detalhes. Lembro bem, pois nossa mãe era presença certa em todos os acontecimentos da comunidade,auxiliando, confortando a família, rezando, confeccionando a mortalha.Era sempre uma autoridade e porisso chamou atenção do pobre Baldo. Um dia me confidenciou,que sempre que lembrava do acontecido ria sozinha, mas no fundo achava que foi uma atitude ridícula, pois estava tão chocada com o berreiro do Baldo que a expressão saiu espontaneamente. Tenho certeza que foi isso mesmo que aconteceu.
    Araci

    A

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    1. Sim, minha Irmã, foi uma reação instintiva que nossa Mãe teve, levada pela noção de que, diante das circunstâncias, precisava fazer alguma coisa. O importante é que, como em tantas outras ocasiões, ela conseguiu resolver o problema e contornar aquela situação tão desagradável.

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