A Religião do Exemplo

                                                                                                                                          Décio Luís Schons (*)

Era outubro de 1975. Comemorava-se o Dia do Professor na EsPCEx, onde cursava, como integrante da Turma Santos Dumont, o terceiro ano do curso colegial. Havia participado de forma bem-sucedida no concurso de redação em homenagem à data e em virtude disso fui convidado pelo Comandante da Escola, o então Coronel José Maria de Toledo Camargo, a participar do almoço comemorativo, com todos os professores e instrutores, no Salão Nobre. Mais ainda, fui distinguido com a deferência de sentar-me à mesa do Comandante, juntamente com o Decano dos professores, os oficiais mais antigos e os professores mais velhos.

Durante o almoço, surgiu à mesa o tema da diversidade dos grupos religiosos existentes na Escola, com a União Católica dos Militares, o Núcleo dos Alunos Evangélicos e o Núcleo dos Militares Espíritas, e sobre o que isso significava para a formação dos futuros oficiais.

A certa altura da conversa, nosso Comandante passou a relatar episódio ocorrido quando ele era cadete de Artilharia na AMAN, num dia em que seu pelotão se encontrava em uma sessão de instrução ministrada pelo então Tenente Jarbas Gonçalves Passarinho, instrutor do Curso.

Durante um intervalo, o Tenente permaneceu em sala a preparar o ambiente para o próximo tempo de instrução e ouviu um debate entre cadetes sobre religião: havia católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas, ateus, cada um defendendo o seu próprio credo religioso ou a sua própria maneira de encarar a religião. O Tenente não interveio na conversa, mas quando a campainha sinalizou o término do intervalo e os cadetes retornaram à sala, ele fez uma breve alocução realçando a liberdade religiosa existente em nosso país, em obediência à nossa Constituição. Enfatizou o respeito que todos devemos nutrir pelas religiões dos companheiros, tendo sempre em conta que a liberdade de um termina onde começa a liberdade do outro.

Num certo momento, o Coronel Camargo, visivelmente emocionado com as lembranças que lhe vinham à mente, repetiu as palavras que ele ouvira do Tenente Jarbas Passarinho havia já cerca de trinta anos: “Nós, militares, temos a liberdade de praticar a religião que escolhermos ou até mesmo de não praticar nenhuma das religiões estabelecidas. Existe, porém, uma religião que todos nós, sem qualquer exceção, temos a obrigação de praticar: é a Religião do Exemplo.”

A lembrança daquele dia nunca me abandonou, associada sempre à imagem do Comandante sob cujas ordens tive a ventura de servir, como aluno, por dois preciosos anos. O Coronel Camargo foi sem dúvida o mais completo chefe e líder militar que tive o privilégio de conhecer, opinião essa compartilhada por muitos de meus colegas de turma. Sempre pautou suas atitudes pela ética. Com ele aprendemos os princípios que norteiam a nossa profissão. Com ele aprendemos a importância da integração do Exército com a sociedade. A Escola Preparatória, sob seu comando, passou a ser parte da cidade de Campinas e nós, alunos, passamos a nos considerar cidadãos campineiros. Mais tarde, já como oficial-general, continuou a nos proporcionar exemplos de coerência, desapego e fidelidade aos ideais que nos transmitira.

Desde então, tenho procurado seguir os ensinamentos recebidos do velho Comandante naquele memorável Dia do Professor de 1975, em que tive a honra de ler para uma plateia seleta o texto que havia escrito em homenagem a minha mãe, que fora, além de tudo, uma das minhas professoras no curso primário (as outras foram minhas duas irmãs mais velhas). Naquele momento memorável, pude perceber nitidamente a tomar forma em meu íntimo o alicerce que havia de nortear minha existência nos anos que se seguiriam: a base familiar associada ao trabalho educativo dos mestres e coroada pelo ensinamento dos chefes e instrutores, de modo a nos habilitar ao cumprimento do nosso dever, aconteça o que acontecer.

Este é um pequeno tributo a minha Mãe e a minhas Irmãs Professoras, um tributo a meus Comandantes, Professores e Instrutores, por terem me ensinado a praticar a Religião do Exemplo. Estejam onde estiverem, recebam meu testemunho de imperecível gratidão.

(*) O autor é General de Exército na Reserva

Nota: Compareci outro dia a uma atividade na EPCEx e fui indagado pelo Comandante da Escola, camarada de outras jornadas, sobre um comentário que eu teria feito há já um bom tempo sobre “religião” e “exemplo”. Demorou um pouco até juntar as ideias, mas logo me veio à mente o antigo episódio a que ele se referia. Pareceu-me que valeria a pena compartilhá-lo com os Amigos e Amigas. 



Comentários

  1. A Religião do Exemplo...do que adianta sermos meros 'papagaios' se não praticamos o que propagamos? Arrastamos pelo exemplo, creio nisso. Gratidão 🙏🏾

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    1. Obrigado, cara Amiga. As palavras convencem, mas o exemplo é que faz de fato acontecer. Tomemos nota do que acontece hoje na Ucrânia.

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  2. A Religião do Exemplo deveria permear a formação em todas as atividades. Teríamos melhores profissionais. E, talvez, menos injustiça, ignorância, arrogância, doenças físicas e mentais e outras.

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    1. Obrigado, caro Professor. O caminho é esse, segundo o meu entendimento.

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  3. O filho obediente é o maior orgulho da Mãe.
    O exemplo que demonstramos e os atos que praticamos falam tudo a nosso respeito.
    Parabéns pelo homem exemplar que te tornaste e assim também serviste de exemplo para muitos jovens se espelharem.

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  4. Caro amigo Schons,

    Vc mexeu em nossa memória, me lembro vivamente do Cel Camargo, um lider visionario e humano. Ajudou na minha formação. E também muito engajante pelo seu carisma e como unir uma equipe. Sou muito grato a ele.

    Grande abraco a todos e Feliz Pascoa.

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    1. Obrigado, Lima. Essa sua posição é compartilhada pela maioria de nossos colegas, conforme frisei no texto.

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  5. Boa tarde caro amigo General Schons que admiramos muito. Em poucas palavras: Felizes os filhos que foram educados pela Religião do Exemplo! Ordem, disciplina, respeito ao semelhante, honestidade, humildade! Sempre vem em minha mente a inesquecível imagem do meu pai, agora em espírito, na Paz de Deus! Neste dia de maior reflexão, a mensagem do amigo foi muito apropriada. Feliz Páscoa.

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    1. Obrigado, Antonio Carlos. Felizes aqueles que têm essas memórias para acalentar.

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  6. Sempre trago comigo a máxima: "a palavra convence, o exemplo arrasta."

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  7. Amiguirmão querido Schons

    Que bela homenagem àqueles que marcaram sua vida, sua formação.


    Somos produto de todos que passam ao longo de nossas vidas, nos marcam e influenciam sempre de alguma forma.

    Vc é um destes fortes e positivos exemplos, na minha.

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    1. Obrigado, Lucinha, pela gentileza de suas palavras e também por ter estado junto a nós em tantos momentos. Obrigado a você e ao saudoso Amigo Honório por tudo que representaram e continuam a representar para a nossa Família.

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  8. Boa noite a Vossa Excelência.
    Sim o BOM EXCELÊNCIA é uma excelente prática.
    Mas para mim a melhor religião que existe é:
    NÃO PRATICAR O MAL.

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    1. Não praticar o mal é muito importante, mas a prática do bem é essencial, caro Amigo, se é que temos a intenção de progredir. Um abraço.

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  10. Realmente Gen Schons, sempre busco constatar se aquilo que é pregado por palavras é colocado em ações espontâneas. As boas palavras devem ser perfeitamente aderentes às ações. Aí sim, teremos um exemplo a ser seguido. Teremos um líder transparente e sincero a ser seguido. Sempre o admirei por isso. Belissimo texto. Fraterno abraço!

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    1. Obrigado, Prado, pelas suas palavras. A recíproca é certamente verdadeira. É muito bom poder contá-lo entre os Amigos.

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  11. Texto maravilhoso, claro, simples e que nos remete a lembranças de vivências passadas.
    Parabéns meu irmão escritor, orgulho da nossa família, por sua trajetória exemplar que só nos deu alegrias.
    Religião pelo Exemplo, abordado pelo teu sábio mestre e que sem nos dar conta, foi por esta estrada que nossa família caminhou e que pautou o trabalho de nossa mãe, na sala de aula e na comunidade: ordem, disciplina, respeito, honestidade, caridade e patriotismo.
    E de lá,do "fundo da grota""brotaram militares, médicos, professores, advogados, funcionários públicos etc...e que até hoje falam que seus ensinamentos auxiliaram nas escolhas que nortearam suas vidas.
    Feliz e abençoada Páscoa à toda nossa família.

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    1. Obrigado, cara Irmãzinha, pelas suas palavras.
      Tudo foi mais fácil para todos nós porque tivemos a graça de ser recebidos neste mundo nos braços carinhosos de nossa querida Mãezinha, ainda hoje recordada por muitos antigos alunos como a Professora Clara. Esteja ela onde estiver, estará certamente velando por nós e nos intuindo a seguir o caminho do Bem e da Ética.

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  12. Obrigado, Robson, pelo seu comentário. Boa noite.

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  13. Prezado Gen SCHONS,
    Bom dia,
    Primeiramente, parabéns por trazer em pauta o assunto sobre o estado laico e a liberdade religiosa, trás com clareza do quão importante foi e continua a ser na formação e na vida de nossos jovens. Tenho formação em ciências exatas e como tal procurarei não me aprofundar nos assuntos sociais, culturais e religiosos, entretanto tenho certeza que o Brasil necessite de debates, discussões e reflexões em muitas áreas, dentre elas a educação que posso me sentir mais a vontade em falar devido lecionar por vários períodos. A pandemia e as dificuldades iniciais trazidas com pela educação à distância propiciaram estados de retrocessos certamente. Atualmente tenho alunos que necessitam de atenção especial, gerados pela pandemia, psicológicos dentre outros. A religião também ficou distante durante o auge da pandemia. Hoje estamos precisando preencher o tempo perdido. Trazer a juventude a participar dos debates, dos temas polêmicos, da política e da religião.
    Digo que um senhor de cabelos brancos, corpo curvado pelo tempo, de andar vagaroso e de voz um pouco tremula, me passou a maior lição de minha vida, nunca roubar, nunca falar mentiras, nunca caluniar. Presenteou aos meus oito anos de idade com um dicionário da língua portuguesa e a seguir com uma bíblia. O BRASIL urge por pessoas de caráter e de boas ideias para construção de uma nação melhor. Senhor Gen. SCHONS, obrigado por ser uma destas pessoas, pela sua enorme contribuição durante todos esses anos, na formação de uma sociedade justa e saudável. Com pequeno tempo de convivência posso afirmar que nossos ideais se convergem.
    Um grande abraço e que Deus ilumine nossos caminhos, feliz dia de Páscoa
    Prof MSc. Ailton de Almeida
    Busquemos o ÓTIMO e se não conseguirmos chegaremos ao BOM.
    Texto completo em : http://ole.uff.br/o-que-e-o-estado-laico/ A laicidade do Estado é um processo. Antigamente, todos os Estados baseavam sua legitimidade no sagrado, de modo que o rei ou imperador era considerado um Deus ou seu filho ou seu enviado. Depois, ele reinava por direito divino, como se um simples mortal tivesse recebido o poder político de um Deus. Por isso, o poder do governante era considerado sagrado, tirando daí sua legitimidade, que se espraiava para todo o Estado. Com essa base religiosa, o Estado privilegiava uma religião em detrimento de outras. Exemplos desses privilégios são abundantes, no passado e no presente, nos regimes políticos monárquicos e nos republicanos.

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    1. Obrigado, Professor Ailton, pela gentileza de suas observações. Concordo com sua visão sobre a necessidade de as pessoas de bem agirem. A omissão pode constituir-se em erro de sérias consequências, principalmente quando se trata de assuntos relevantes para o futuro de nossa sociedade.
      Precisamos conversar mais e debater esses temas.

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  14. José Marcos de Almeida Neves27 de julho de 2022 às 11:26

    Caro amigo Schons
    Permita-me comentar que, além de dar o exemplo, o líder carrega mais duas servidões indelegáveis: a decidir e fazer justiça. Forte abrAÇO!

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    1. Obrigado, caro Amigo Neves, pelo seu comentário. Certamente. Concordo contigo.

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  15. Parabéns pelo excelente texto General. O Exemplo sempre será o condutor dos homens em todos os sentidos da vida.

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