Fatalismo, livre arbítrio e o mundo que almejamos
Décio Luís Schons (*)
Assisti há anos um filme ambientado na Índia, durante os
acontecimentos que levaram à independência daquele país na década de 1940,
focando os conflitos entre hindus e muçulmanos característicos do período. A
cena que mais me marcou retratava episódio em que um jovem britânico recebia de
um religioso hindu a notícia de que uma massa de manifestantes hindus estava se
dirigindo a determinada praça e que o caminho dessa manifestação cruzaria com o
de uma outra, de muçulmanos. O desfecho desse encontro, incluindo algumas
centenas de mortes, foi antecipado com tranquilidade pelo religioso.
O jovem britânico apressou-se a sugerir que se informasse à
polícia, para que uma das manifestações fosse desviada e assim se evitasse mais
um desastre. A resposta do guru ilustra muito bem o fatalismo de algumas
religiões e correntes religiosas: “O que tiver que acontecer já está escrito.
De nada adianta tentar interromper ou desviar o curso do destino. Aprenda que
essa é a roda do carma, que nunca para de girar”.
Nessa mesma linha de entendimento da vida e do universo,
encontramos as teses de caráter religioso segundo as quais o ser humano já
nasce predestinado ao paraíso ou ao inferno, independentemente do que faça,
tenha feito ou venha a fazer na presente existência. Essa decisão seria fruto
simplesmente dos insondáveis desígnios da Divindade. Para outros ainda, a
salvação dependeria da conversão a essa ou aquela corrente religiosa e da
consequente adesão a seus postulados e práticas confessionais.
No extremo oposto desses entendimentos tristemente
fatalistas, em que o destino último do ser humano seria determinado por um ser
todo-poderoso ou por uma série de fatores totalmente alheios a sua capacidade
de vontade e ação, estão aqueles que acreditam puramente no acaso. Para essa
corrente de pensamento, faça o ser humano o que fizer, as consequências de suas
ações limitam-se ao mundo das formas. Assim, por exemplo, o criminoso que não é
apanhado e responsabilizado por suas práticas delituosas e vive uma vida de
fausto a partir do resultado de seus crimes representaria muito bem um caso de
sucesso. O materialismo nu e cru é a marca registrada dessa maneira de pensar.
A Doutrina Espírita, no contexto da Terceira Revelação
codificada e dada ao mundo por Allan Kardec na segunda metade do século XIX,
veio trazer o equilíbrio que faltava entre correntes de pensamento tão
desencontradas. O Espiritismo construiu as pontes que faltavam entre a ciência,
a filosofia e a religião e pacificou o entendimento sobre o destino do ser
humano, colocando-o, não como mero joguete de forças que não domina, mas como
personagem principal na construção de seu próprio futuro.
Ao reconhecer nossa situação presente como resultado do que
fizemos ou deixamos de fazer nesta reencarnação ou em reencarnações anteriores,
o Espiritismo reafirma o princípio da responsabilidade, segundo o qual todos
teremos de responder por tudo que fizemos ou que venhamos a fazer e receber na
devida medida as consequências dos erros e acertos praticados. É a lei de ação
e reação, tão bem conhecida e aceita no mundo físico e que atua com o mesmo
rigor nas outras dimensões.
Numa comparação imperfeita com o trabalho do ceramista, o
passado é a peça já saída do forno, em sua forma definitiva. Nessa, já não
podemos trabalhar, ela está pronta e acabada. O passado é passado e nele não
podemos mexer. Podemos, sim, olhar para ele e extrair os ensinamentos para
evitar trilhar caminhos ou os passos em falso que já demos e que levaram à
infelicidade nossa ou do nosso próximo, tudo de acordo com o conhecido
princípio de que não devemos cometer erros velhos. O presente e o futuro são constituídos pelo
barro ainda mole, passível de ser trabalhado e assim transformar-se, de acordo
com os nossos desejos e a nossa ação. O segredo, portanto, estaria em voltarmos
a atenção para o presente, que é onde de fato temos liberdade para agir, e nele
construirmos o destino dos nossos sonhos, para nós e para as pessoas que
amamos.
Tudo isso, dirão, é muito simples – simples demais até para
ser verdade. Acontece que a simplicidade se limita às aparências.
Experimentemos viver de acordo com esses princípios, tendo presente em todos os
momentos que somos responsáveis pelo que fazemos, pelo que dizemos, pelo que
pensamos. Experimentemos não nos ofender pelos maus passos de nossos irmãos em
relação a nós. Experimentemos não reclamar, por saber que o objeto da nossa
reclamação de hoje nada mais é que o resultado de nossas ações de ontem.
Experimentemos fazer apenas isso e então chegaremos à conclusão de que não é
simples nem fácil.
Quando, num futuro não muito distante, o entendimento dessa
realidade permear as ações, as atitudes, os sentimentos e as crenças de parcela
ponderável da Humanidade, teremos a sinalização de que nosso querido Planeta encontrou
o caminho para transformar-se num mundo de regeneração. Esses serão os
indicadores de que o ciclo das reencarnações compulsórias terá ficado para
trás. Enquanto isso não acontecer, continuaremos a viver nesse mundo de provas
e de expiações, de sofrimentos, de lágrimas e de lamentações.
Todas as manhãs, ao lançarmos o olhar para o azul do céu,
que nos venha à mente agradecida a mensagem – mais que a mensagem, o convite:
“recebemos do nosso Pai Celestial mais um dia para viver de acordo com seu
sublime Mandamento: amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si
mesmo”. Ao aceitarmos esse convite, estaremos prestes a dar o primeiro passo na
construção do mundo que almejamos.
(*) O autor é General de
Exército na Reserva
Boa tarde caro Irmão
ResponderExcluirA questão nº 122 do Livro dos Espíritos enuncia:
“O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a consciência de si mesmo. Já não haveria liberdade, desde que a escolha fosse determinada por uma causa independente da vontade do Espírito...".
Artigo excepcional que, inclusive, lança luz sobre o que nos falta para ingressarmos no "Mundo de Regeneração".
Abraços fraterno.
José Acácio Rocha.
Caro Amigo Acácio, seu comentário, como de costume, não deixa margem a dúvidas. Obrigado.
ExcluirSe o ser humano já viesse predestinado ao paraíso ou ao inferno, não seria culpado pelos seus atos! Por isso há o livre arbítrio. Façamos o bem e teremos o mesmo retorno; façamos o mal e esse será o retorno. Meu entendimento!
ResponderExcluirPerfeitamente, Antonio Carlos. Muito obrigado pelo seu comentário.
ExcluirPrezado Schons, tenho tido a oportunidade de acompanhar seu conhecimento espiritual, com o qual tenho refletido e aprendido muito. Grato por compartilhar conosco a sua sabedoria. Estamos vivendo um momento especial, que requer alimentar nossas consciências com afirmações que estimulem nossa crença raciocinada.
ResponderExcluirObrigado, Amigo. Segundo Kardec (dito clássico que acabou por se transformar em um dos pilares da Doutrina Espírita), Fé inabalável é somente aquela capaz de encarar a razão face a face, em todas as épocas da humanidade.
ExcluirQuerido irmão, importante é necessária reflexão.
ResponderExcluirA evolução nos afasta do determinismo absoluto e nos conduz ao Livre-arbítrio Absoluto.
Na jornada, que tem início e não tem fim, pois o Livre-arbítrio Absoluto é atributo de Deus, seguimos com o nosso livre-arbítrio relativo.
Continue oferecendo apontamentos para todos nós, seus amigos e irmãos de jornada.
Paz em Cristo!
Obrigado, Sá Ferreira, pelo seu importante comentário em complemento à minha breve e incompleta reflexão. Assim é que funciona: a verdade não está nem comigo nem contigo, mas, mediante o diálogo e a discussão sincera e bem-intencionada, vamos nos aproximar cada vez mais dela.
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